"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.
É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário.
E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence."

(Bertolt Brecht)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

OS SEQUESTROS QUE ABALARAM A DITADURA MILITAR

Em 1 de abril de 1964 foi instaurada no Brasil uma ditadura militar que iria perdurar por mais de vinte anos. Durante este período, várias foram as fases e as faces do regime repressor. Recebidos por grandes manifestações favoráveis, com milhares de pessoas acorrendo às marchas de apoio, os militares iniciaram a caça às bruxas. Incitaram o incêndio ao prédio da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), encerraram organizações sindicais e estudantis, caçaram políticos opositores, expurgaram as alas de esquerda de dentro das forças armadas, acabaram com o voto popular para presidente.
De 1964 a 1968 a luta dos estudantes passou a ser clandestina, ou seja, a UNE fora dissolvida, mas continuava a existir na ilegalidade, assim como vários partidos de esquerda. Havia uma esperança de que a situação política fosse revertida e os militares golpistas voltassem para a caserna. 1968 foi o ano de todos os protestos. Movida pelos movimentos internacionais daquele ano, a resistência à ditadura no Brasil promoveu passeatas e atos públicos de grande repercussão. A esperança apagou-se de vez, em 13 de dezembro de 1968, quando o Congresso foi fechado e o Ato Institucional Nº 5 foi promulgando, minando qualquer possibilidade de diálogo, numa ditadura que se tornou ainda mais repressiva e sanguinária.
As conseqüências do endurecimento do regime militar foram irreversíveis em alguns setores de oposição. Acossados, membros de esquerda, que viram os seus líderes presos e torturados, sem direito a hábeas corpus, passaram a conclamar o fim da contestação pacífica, mergulhando numa contundente resistência guerrilheira. Estava declarada a luta armada no Brasil.
A luta armada gerou os famosos guerrilheiros da esquerda radical. Consistiu em jovens idealistas, a maioria com menos de 25 anos de idade, a pegar em armas, a assaltar bancos e supermercados, obtendo através destas ações, fundos para manter os guerrilheiros, todos a viver na clandestinidade, impossibilitados de trabalhar ou de ter direitos cívicos. Ataques a quartéis militares para a obtenção de armas e munições também fizeram parte da luta armada. Mas os movimentos mais complexos desta luta foram os seqüestros a diplomatas de importantes governos que faziam a representação dos seus países no Brasil.
De 1969 a 1970, quatro grandes seqüestros abalaram a ditadura militar, causando-lhe constrangimento diplomático no cenário internacional e proporcionando uma grande derrota política. O primeiro, realizado em setembro de 1969, foi do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e o de maior repercussão nacional e internacional. Vieram, em 1970, os seqüestros do cônsul japonês Nobuo Okushi, do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben e, do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Realizados para chamar a atenção internacional do que acontecia no Brasil, os seqüestros aos diplomatas serviram para a troca dos líderes políticos que estavam presos nos calabouços a sofrer torturas, tendo muitos deles perecido, não resistindo às atrocidades. A logística dos seqüestros mostrou a habilidade ofensiva dos grupos armados, mas foi o golpe de misericórdia sobre as suas cabeças, forçando o regime militar a intensificar a perseguição e repressão aos que se opunham à ditadura, agindo de forma violenta, matando, torturando e aniquilando de vez qualquer resistência. Os seqüestro representaram o auge da resistência armada e, também, o seu fim definitivo.

Organização do Primeiro Seqüestro

Em 1969 veio a resposta definitiva do AI-5 sobre os líderes da resistência ao regime militar. Muitos foram presos e torturados. A Operação Bandeirantes (Oban), deflagrada por todos os órgãos repressivos das polícias e das forças armadas, prendia, torturava e desaparecia com aqueles que consideravam subversivos ao regime. Os militares, cada vez mais à vontade no poder, estavam longe de qualquer redenção ou volta à caserna. Esta posição ficou clara quando o então presidente, marechal Artur da Costa e Silva, foi afastado da presidência em 31 de agosto, em conseqüência de uma isquemia que o levaria à morte alguns meses depois. O então vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil, foi impedido de assumir a presidência e submetido à prisão domiciliar. Uma junta militar assumiu o poder, até que se elegesse de forma indireta, outro presidente militar.
Foi no cenário desta confusão política que se planejou e executou uma das maiores ações da história recente do Brasil, o seqüestro ao embaixador norte-americano Charles Elbrick. A ação foi desencadeada para acontecer em setembro, durante as comemorações da Semana da Pátria, considerada um ícone do regime autoritário.
Antes de surgir a idéia do seqüestro, Stuart Angel Jones e Cláudio Torres, membros da organização de esquerda Dissidência da Guanabara, nascida das divergências dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se opunha à luta armada; e Paulo de Tarso Venceslau, da Ação Libertadora Nacional (ALN), a maior organização guerrilheira da época, debateram um plano para libertar os líderes estudantis Vladimir Palmeira, Luís Travassos e José Dirceu, presos desde o fatídico congresso da UNE em Ibiúna, sem direito a hábeas corpus. A ação consistiria em fazer um resgate, promovendo um assalto aos jipes em que os prisioneiros eram conduzidos do Forte de Itaipu, na Praia Grande, litoral paulista, para interrogatórios e audiências na Auditoria Militar da Avenida Brigadeiro Luís Antonio, em São Paulo. O resgate sucederia no primeiro semestre de 1969, acontecendo na subida da Serra do Mar ou na porta da Auditoria. Foi no decurso do plano, que poderia originar uma tragédia, que surgiu a idéia do seqüestro ao embaixador dos Estados Unidos.
O estudante Franklin Martins, da Dissidência da Guanabara, teve a idéia ao passar pela Rua Marques, no bairro do Botafogo, Rio de Janeiro. O estudante observou que todos as manhãs, Charles Elbrick, embaixador norte-americano,
fazia aquele trajeto. Diante das evidências, Franklin Martins levou o seu plano aos dirigentes da Dissidência da Guanabara.
A idéia do seqüestro parecia audaciosa e de grande porte para que fosse realizada somente pelos militantes daquela organização. Assim, Cid Benjamin foi enviado a São Paulo, para expor o plano a Joaquim Câmara Ferreira, dirigente da ALN. Joaquim Câmara Ferreira, um dos homens mais procurados pela ditadura militar, levou consigo os companheiros Virgilio Gomes da Silva e Carlos Eduardo Fleury. A aceitação do plano foi imediata. O líder da ALN concordou que a sua organização entraria na audaciosa ação, e que ela serviria como marco de propaganda na Semana da Pátria, para que se consolidasse uma guerrilha de campo.
Unidos em um dos planos mais audaciosos da história da esquerda revolucionária no Brasil, ALN e Dissidência da Guanabara seguiram juntas no empreendimento. Joaquim Câmara Ferreira assumiu o comando político, e coordenaria as negociações com o governo. Virgílio Gomes da Silva teria o comando militar da ação. Aproximadamente um mês depois da decisão do seqüestro, em Setembro, no auge das comemorações da Semana da Pátria, o plano foi posto em prática, abalando o Brasil e ao regime militar, resultando na libertação dos três líderes estudantis que nas confabulações anteriores, seriam resgatados, e de mais doze presos políticos.

O Seqüestro do Embaixador Charles Elbrick

A operação de seqüestro ao embaixador Charles Elbrick foi desencadeada na manhã do dia 4 de setembro de 1969, numa quinta-feira. Ás nove horas da manhã, um grupo de pessoas tomou, discretamente lugares estratégicos do bairro do Botafogo, iniciando o aparato logístico e militar.
Coube ao guerrilheiro José Sebastião Rios de Moura, ficar de sentinela no Largo dos Leões, inicio da Rua São Clemente e esquina com a Rua Conde de Irajá, e avisar com um sinal – levantar um jornal, quando o Cadillac do embaixador viesse. Do outro lado do Largo, na esquina da Rua Marques com a Rua Humaitá, João Lopes Salgado e Vera Silvia Araújo Magalhães observavam José Sebastião, encostados em um Fusca vermelho grená. Outro Fusca azul fazia a retaguarda, estacionado na Rua Marques, trazendo Cid Benjamin ao volante e Franklin Martins no banco de passageiros. Nas calçadas da Rua Marques, quatro homens cobriam a ação, a pé, sendo dois do lado esquerdo, Cláudio Torres e Paulo de Tarso Venceslau; e dois do lado direito, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto e Virgilio Gomes da Silva. Para fechar o esquema, Sérgio Rubens de Araújo Torres estacionou uma Kombi verde, na Rua Vitório Costa, a seis quadras do foco.
Em um sobrado da Rua Barão de Petrópolis, no numero 1026, no Bairro de Santa Tereza, que serviria como cativeiro do seqüestrado, esperavam Joaquim Câmara Ferreira e Fernando Gabeira.
A movimentação dos seqüestradores foi observada por uma moradora, mulher de um militar, que chamou a polícia. Os guardas vieram, mas não encontraram nada que confirmasse às suspeitas da moradora, visto que as placas dos Fuscas, apesar de frias, pertenciam a carros sem problemas de documentação. A polícia vai embora.
Excepcionalmente naquele dia, Elbrick estava atrasado. O seqüestro, planejado para suceder durante a manhã, só iria acontecer à tarde. Só às 14h30 é que o Cadillac 1968, que trazia o embaixador, despontou no local de rotina. Na Rua Marques, foi obrigado a parar pelo Fusca azul, que fingiu uma manobra. O Fusca vermelho, conduzido por Rios, impediu que a limusine saísse de ré. Os quatro companheiros que estavam na calçada tomaram o carro diplomático de assalto. Com um revólver 38 na mão, Paulo de Tarso mobilizou o motorista e o embaixador e, simultaneamente, arrancou os fios do rádio que fazia a comunicação com a segurança da embaixada. Cláudio Torres assumiu a direção do carro. No banco de trás, Virgílio Gomes da Silva e Manoel Cyrillo sentaram-se junto a Elbrick, cada qual de um respectivo lado. Consumado o seqüestro, os três carros avançaram seis quadras, onde estava a Kombi, que naquele momento, assumiu a ponta do comboio.
Os carros pararam, cinco minutos depois,
na Rua Maria Eugênia, na esquina com a Rua Caio de Melo Franco. Assustado, pensando que seria morto, Elbrick tomou a arma de Virgílio Gomes da Silva, mas Manoel Cyrillo desferiu-lhe uma coronhada na cabeça, deixando-o aturdido. O embaixador foi transferido para a Kombi, sendo coberto por um tapete. A direção da Kombi passou para as mãos de Cláudio Torres, e Sérgio Rubens de Araújo deixou o grupo, indo embora a pé. A Kombi seguiu com o seqüestrado e os seqüestradores, remanejados em um Fusca bege que ali os aguardava. Para trás ficavam o Fusca azul e o Cadillac. No banco de trás do carro diplomático abandonado, ficaram o motorista de Elbrick, Custódio Abel da Silva, e um manifesto dos seqüestradores.
O manifesto, que exigia a libertação de quinze presos políticos em troca da vida de Charles Elbrick, e a sua publicação na imprensa, cobriria as páginas dos jornais do dia seguinte, 5 de setembro. Os nomes dos quinze presos seriam divulgados posteriormente, na manhã seguinte. O manifesto levava a assinatura da ALN e do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), nome que a Dissidência da Guanabara passou a assinar depois da ação de seqüestro do embaixador.

O Fim do seqüestro

Cinco minutos antes das três horas daquela tarde, Charles Elbrick chegou ao cativeiro, um sobrado de Santa Tereza, sendo recebido por Joaquim Câmara Ferreira e Fernando Gabeira, que ali o esperavam, acompanhados do sindicalista nordestino Antônio de Freitas, o Baiano, que fugindo da repressão, era hóspede dos guerrilheiros, mas que não teve qualquer participação no seqüestro.
No sobrado, o embaixador teve conversas cordiais com os seus algozes, que com ele falaram sem usar máscaras. Do lado de fora, a quarenta metros, o sobrado passou a ser vigiado ainda naquela tarde de 4 de setembro, por uma Rural Willys do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que segundo relatos posteriores, desconfiavam ser aquele o cativeiro do embaixador, mas sem ter certeza.
A ação dos guerrilheiros surpreendeu o regime militar e todo o Brasil. Deixou o governo brasileiro em uma situação diplomática delicada com os Estados Unidos. Para que o seqüestro fosse solucionado, o governo militar foi obrigado a ceder a todas as exigências dos seqüestradores, evitando assim, que algo sucedesse ao embaixador, pondo em risco a sua vida. Uma grande operação ofensiva foi montada, envolvendo mais cinco mil homens das três forças armadas, quatro mil policiais civis e militares, quinhentos agentes dos serviços de informações e trezentas viaturas.
No dia 7 de setembro, no domingo à tarde, começou a operação de libertação do embaixador. Os seqüestradores começaram a abandonar o sobrado de Santa Tereza divididos em grupos. Os últimos que deixaram o cativeiro foram Joaquim Câmara Ferreira e Virgílio Gomes da Silva, levando com eles o embaixador Charles Elbrick . Virgílio e o seqüestrado seguiram para um Fusca branco, parado em frente ao sobrado, ao lado de outro Fusca bege, o mesmo utilizado no dia do seqüestro. Os agentes vigilantes do Cenimar, reconheceram, com surpresa, o embaixador, inconfundível nos seus quase dois metros de altura. Assim, os Fuscas bege e branco partiram, tendo no encalço a Rural Willys dos agentes do Cenimar. O terceiro Fusca, o vermelho, seguiu a Rural sem que os agentes se apercebessem.
Na Rua Estrela, a Rural dos agentes da repressão derrapou. Na Rua Aristides Lobo, o Fusca vermelho encostou junto à Rural. Manoel Cyrillo apontou uma metralhadora para os militares, que covardemente, fugiram assustados, virando na rua seguinte.
Despistados os agentes militares, Charles Elbrick é deixado no Largo da Segunda-Feira, levando de presente dos seqüestradores um livro de poemas de Ho Chi Min, escrito em inglês. Elbrick voltou para a sua casa de táxi. Nos primeiros depoimentos após a sua libertação, surpreendentemente foi simpático aos seqüestradores, descrevendo-os como jovens determinados, inteligentes e fanáticos. O embaixador morreria de pneumonia em seu país, em 1983.

Os Presos Políticos Trocados Pelo Embaixador

Em troca do embaixador, os quinze presos libertados foram: Onofre Pinto, fundador da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que sofreria uma emboscada no Paraná, entrando para a lista dos desaparecidos da ditadura desde 1974; Luis Travassos, ex-presidente da UNE, morto em um acidente de automóvel em 1982, no Rio de Janeiro; Ricardo Zaratini, do movimento operário, irmão do ator Carlos Zara, envolvido em lideranças partidárias no Brasil pós-ditadura; Rolando Fratti, morto por um câncer em 1991; Vladimir Palmeira, líder estudantil que comandou a Passeata dos Cem Mil em 1968, futuro deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT); José Dirceu de Oliveira e Silva, líder estudantil, preso em Ibiúna, futuro ministro da Casa Civil do governo do presidente Lula; Gregório Bezerra, líder sindical, morto por um câncer em 1983; Ivens Marchetti, arquiteto que viveu na Suécia, militante da Dissidência de Niterói, morto por um câncer em 2002; João Leonardo da Silva Rocha, militante da ALN, morto pela ditadura no interior da Bahia, em 1974; Maria Augusta Carneiro, única mulher da lista, militante da Dissidência da Guanabara, a DI-GB, presa em Ibiúna, futura proprietária de uma escola para deficientes no Rio de Janeiro; Mário Roberto Zanconato, fundador da Corrente Revolucionária ligada a ALN, futuro médico da prefeitura de Diadema, em São Paulo; Ricardo Vilasboas Sá Rego, militante da DI-GB, futuro músico e compositor, que deixou a luta armada para viver na França; José Ibrahim, líder do movimento operário paulista, futuro secretário de relações internacionais da Força Sindical; Agnaldo Pacheco da Silva, militante da ALN; e, Flávio Tavares, jornalista, coordenador do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), colaborador do jornal “O Estado de S. Paulo”. Os quinze prisioneiros deixaram o país em um avião, o Hércules 56, que seguiu para o México, de onde seguiram cada um, para um destino no exílio. Muitos deles retornariam incógnitos para o Brasil, alguns anos depois, continuando a luta na clandestinidade.



Texto retirado do blog http://jeocaz.wordpress.com/2009/07/26/os-sequestros-que-abalaram-a-ditadura-militar/ lá podem ser encontrados a continuação do texto e fotografias.

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