"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.
É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário.
E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence."

(Bertolt Brecht)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Não estamos sós_Gil Vicente


Gil Vicente: "Obras são protesto movido pelo meu desencanto"



Por / Ana Cláudia Barros

Quando encaminhou suas obras para a 29ª Bienal de Artes de São Paulo, o artista plástico pernambucano Gil Vicente não vislumbrava o estardalhaço que se avizinhava. Mesmo reconhecendo o teor polêmico dos trabalhos - que retratam o próprio artista prestes a assassinar personalidades, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso -, Vicente se diz surpreso com a reação da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O presidente da entidade, Luiz Flávio Borges D'Urso, interpretou os autorretratos como "apologia ao crime".
Em entrevista a Terra Magazine, Vicente ironiza a atitude da OAB-SP e, sarcástico, diz ter uma dívida de gratidão em relação ao órgão.

- Acho que o ato da OAB redundou numa propaganda do trabalho. Isso é ruim para a Bienal porque desvia a atenção de outros trabalhos. Agora, para mim, foi uma assessoria de imprensa (risos). E de graça! A OAB tem minha eterna gratidão.

De acordo com ele, foram os recorrentes atos de corrupção e de injustiça social que motivaram a série "Inimigos", criada em 2005. "É um protesto movido pelo meu desencanto", explica. E com indisfarçável niilismo, dispara:

- O voto não é só inútil. Percebo que o votar é até um ato criminoso. Você vai, perante um tribunal, que é o tribunal eleitoral, e vota. É o mesmo que escrever: "Autorizo fulano de tal a roubar dinheiro público, sob proteção da lei, durante quatro, oito anos". É só o que eles fazem.
Confira a entrevista.

Terra Magazine - Como você avalia a iniciativa do presidente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luiz Flávio Borges D'Urso, que solicitou a retirada de suas obras da 29ª Bienal de São Paulo? Você esperava por esse tipo de manifestação por se tratar de um trabalho polêmico?
Gil Vicente - Não esperava. Eu expus esta série em Recife, Natal, Porto Alegre e, nenhum lugar, houve uma reação desse tipo. Teve, assim, leitores que reclamavam com jornal, ficavam no blog do jornalista, aplaudindo ou cuspindo na série. Geralmente, as opiniões a favor do trabalho eram em torno de 70%, 80%.
Achei que foi um equívoco (a atitude de D'Urso), porque não tinha motivo para isso. A diretoria da Bienal e os curadores estariam empenhados em impedir que isso acontecesse, caso ele insistisse ou viesse com mandado de segurança ou sei lá o quê.


D'Urso acionou o Ministério Público. Ele afirmou que fez isso não como uma tentativa censura. Argumentou que suas obras fazem apologia ao crime. O que você pensa sobre isso? 
Apologia ao crime no sentido de mostrar a violência porque uma pessoa está matando outra? E a TV? O que ela faz é muito pior. Mostra na Sessão da Tardefilmes violentíssimos. Há desenhos animados com muita violência, muito preconceito.


Durante entrevista de D´Urso, Terra Magazine colocou essa questão. O presidente da OAB-SP argumentou que os filmes eram obras de ficção e você retratava figuras reais.
Não há filmes que trataram do assassinato de presidente americano? Não era o presidente, mas uma representação. Como disse o curador Agnaldo Farias, da Bienal, então terá que proibir peça de Nelson Rodrigues, porque tinha morte no palco; Edipo Rei, porque incentivaria o incesto. Enfim, vamos voltar com a censura, né?! Acho que isso tudo é uma besteira. Não fiz nada real. Foi uma ficção. Eu quis dizer com os desenhos é que, a partir desse momento, 2005, quando fiz a série, caiu a minha ficha. Não adianta ter esperança em nada.


Então, a série simboliza deseperança? Qual foi sua motivação para criar os autorretratos simulando assassinatos de personalidades? Que mensagem você pretende passar e qual o critério de escolha dos personagens?
O motivo foi que eu compreendi, finalmente, graças a Deus, que não se pode alterar nada disso. O instrumento que a gente tem é o voto, que não vale nada.


Seu trabalho reflete um desencanto pessoal?
Desencanto que, aliás, todo mundo deveria ter. Como alguém pode estar satisfeito? Só os que estão roubando junto ou quem está completamente desligado. A classe média, e eu sou classe média, quando vê pobreza, vira o rosto. Nós ainda somos beneficiados nesse sistema. Mas quando chega no pessoal pobre, que mora em favela, na periferia... A maioria da população vive nesse estado.


As obras podem ser consideradas como uma forma de protesto?
É um protesto movido pelo meu desencanto e por ter certeza de que nada vai mudar. Se passamos numa lombada eletrônica com velocidade acima do permitido, somos punidos. Se estacionamos na calçada, somos punidos. Por que justamente as pessoas que controlam as verbas nacionais são imunes à punição? Já viu um político que rouba ser punido realmente? 
Eu tinha uma esperança que, quando Lula fosse eleito - desculpe a expressão - que ele colocasse uma rola bem grande na mesa e dissesse: "Agora é assim". Mas ele está fazendo a mesma coisa. Aí, eu desacreditei de vez. Acho o voto inútil. Por isso, não voto mais. Qualquer pessoa que for lá para dentro vai roubar impunemente.


Você também retratou personagens internacionais, como o papa Bento XVI.
Sim, porque todos os papas fazem uma escrotice absurda: retirar todos os padres que pensam diferente; afastar os padres que estão pensando de outra forma. Eles se associam com diversos poderes para ter mais dinheiro. Não sou contra a religião. Sou contra a igreja, que é um poder que poderia influenciar positivamente, e fazem o contrário.
Volto para o voto. O voto não é só inútil. Percebo que o votar é até um ato criminoso. Você vai, perante um tribunal, que é o tribunal eleitoral, e vota. É o mesmo que escrever: "Autorizo fulano de tal a roubar dinheiro público, sob proteção da lei, durante quatro, oito anos". É só o que eles fazem.


Estou vendo o tamanho do seu desencanto (risos).
Ninguém fala. As TVs poderiam denunciar, mas não fazem.


Você acha que a arte também tem esse papel?
A arte pode fazer tudo, ir para todo lado. Seja um trabalho como esse que fiz, seja uma pintura abstrata que te toque de alguma forma. A arte pode fazer a pessoa refletir, tocar a pessoa simplesmente de modo poético, e isso pode mudar a pessoa também. Então, acho que a arte tem um espaço muito generoso de liberdade.


Falando em arte, não é só seu trabalho que está no centro de uma polêmica. A Justiça determinou retirada da obra "El Alma Nunca Piensa Sin Imagen" desta Bienal porque o artista argentino Roberto Jacoby utiliza imagens dos candidatos Dilma Rouseff (PT) e José Serra (PSDB). O trabalho foi encarado como propaganda eleitoral. Qual sua avaliação em relação ao caso? 
Aparece o rosto de Dilma (Rousseff) pequeno, como se estivesse insultando, inquirindo o de (José) Serra, que aparece raivoso também. Não cheguei a ver nitidamente algo em favor de Dilma, mas era isso que estavam dizendo. Argentina e América Latina precisam de Dilma, como se fosse mudar alguma coisa (risos).
Mesmo havendo uma proibição de campanha eleitoral, acho que isso, inserido em uma exposição de arte não pode ser caracterizado como propaganda eleitoral. É como se fosse um território diferente.


Você encara esse tipo de iniciativa como uma interferência demasiada na arte? 
Sim. E a gente sente cheiro de ditadura nessas coisas. Acho absurdo. No meu caso, pedi à Bienal, se essa coisa de querer retirar o meu trabalho voltar à tona, se a Bienal não conseguir evitar isso... Se eu não puder exibir os trabalhos, prefiro que cubra-os ao invés de retirar os trabalhos. Coberto ninguém vai ver, mas fica uma forma de protesto.
Acho que o ato da OAB redundou numa propaganda do trabalho. Isso é ruim para a Bienal porque desvia a atenção de outros trabalhos. Agora, para mim, foi uma assessoria de imprensa (risos). E de graça! A OAB tem minha eterna gratidão.


Você acredita que, se tivesse retrado Serra ou Dilma nos lugares de Lula ou FHC, o desenho também seria considerado propaganda eleitoral? 
Eu estaria sendo contra os dois (risos). Nessa série, há vários poderes diferentes representados. Quis fazer assim: um governador anterior e um atual de Pernambuco. Quis mostrar que minha revolta não é partidária, é contra todos. Ninguém faz porra nenhuma. Retratei, por exemplo, Lula e Fernando Henrique, (o presidente iraniano Mahmoud) Ahmadinejad e (o ex-ministro de Israel) Ariel Sharon. Não estou a favor de ninguém. Nenhum desses faz algo para evitar que tanta gente sofra.




Zé Celso e Por que sou artista?

Libertemos a Cultura de suas Prisões!


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Por que eu sou artista?





Plínio Marcos


Meu pai morreu


Dia 19 de novembro é aniversário da morte do meu pai, escrevi este texto no dia em que ele morreu:19 de novembro de 99.



Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento?Não. Carro?Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? De quem são as peças de teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro dá dinheiro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador. Era um “maldito”, diziam, um “marginal”, mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? “Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo.”. Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem dente? Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidiários não dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados não tinha “patrocínio”. Mas eu queria tênis americano, eu queria camisa Lacoste, camisa Hang Ten.


Meu pai tinha que ganhar dinheiro. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários? Ele insistia. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e nada de “comédia comercial”. Mas eu queria o meu “All Star”, eu queria ter todos os discos dos Beatles. “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!” E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive que comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet). Calça boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro? Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis “All Star”? Ele achava que isso era “lixo americano”. Ele achava que essa merda importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria, só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro?


Era época de ditadura. Escrever sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários, incomodava os “poderosos”. Porra, ainda mais essa! Já escreve sobre coisa que não dá dinheiro, mas além de não dar dinheiro, ainda é proibido? “Pai, me dá dinheiro pra comprar disco do Bob Dylan!”.


Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller. Mas Beto Rockfeller não conta, Beto Rockfeller era A novela, tinha a cara dele, era revolucionária. Ele fazia o Vitório, o melhor amigo do Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um... Mas A novela era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: “Bandeira 2”. Mas a Globo é no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava as gravações e ia pra praia: “Novela é chato pra caralho, porra! O direito da gente coçar o saco é sagrado.”, ele dizia. Ele ia pra praia e lá ficava indignado porque naquela época a Globo não punha negros nas novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo. Meu pai escreveu no jornal “A Última Hora” do Samuel Wainer, onde ele trabalhava, que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer “Gabriela”. A Globo não gostou. Os “poderosos” da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças, juraram de morte. Em fim, a Globo não dava mais. Quando ele tava por lá, ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu queria dinheiro pra comprar tênis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafetão e cigano sem dente? Não, novela de puta, cafetão e cigano sem dente não dá. Se fosse cigano com dente, musculoso e mau ator, aí dava. Agora, cigano sem dente, pobre e fudido, não dá. Então não dá. “Na televisão brasileira, artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo.” Tudo bem, não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava, não podia novela de cigano pobre, fudido e sem dente porque a T.V. não queria. Então o que que podia? Não podia nem chamar a Rede Globo de racista, nem nada. A sinopse que ele fez pra uma novela quando finalmente a Globo chamou ele, era de uma tribo de ciganos que estupravam as filhas dos empresários e...bem, não aprovaram. E as portas iam se fechando. E a ditadura ali, descendo o cassete. E eu queria o meu tênis “All Star”! “Pai, porra, pai, eu quero dinheiro pra comprar time de botão!” Mas enquanto os “poderosos” iam dizendo: Não! Não! Não! Ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um “povo que berra da geral sem nunca influir no resultado”, um povo fudido, os marginais, as putas, os ciganos sem dente, os presidiários, um povo que não aparecia na T.V. “Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia”. Pobre na Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo não tem rato. Esse povo não era o povo dele. O povo dele era entre outros, os sambistas, não esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas, os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas marginalizados, os que nunca gravaram CD. O Zeca da Casa Verde, o Talismã, o Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os que morrem na merda. “Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu...”.


Então a solução era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histórias e os sambistas cantavam suas músicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros? Negro não podia. Em plena ditadura, Plino Marcos e “a negrada”? Que papo é esse? Poder, podia, mas ninguém queria ver. “A burguesia não me quer”, ele dizia. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente pobre e fudido, não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria ver show com “a negrada”. Então o que que podia? “Pai, me dá dinheiro pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!”


A ditadura quando eu tinha 7 anos tava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada casal que fazia “amor com medo”, nos porões do Doicodi e nas torturas atrozes que muitos sofriam e eu lá: “Pai, me leva na Expoex, pai, me leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os soldados, pai! Eu quero ver os tanques!” E ele me levava. Senão eu chorava. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex.


Quando eu tinha uns 12, 13 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchauzinho. E um amiguinho meu perguntou: “Quem é seu pai?” Eu não tive dúvida: “Meu pai é aquele!” E o meu amiguinho: “Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?” E eu: “É, aquele.” O meu amiguinho gritou: “Pai, esse aí é o pai do Leo!” E a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! “O pai do Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!” Afinal, quem trabalha tem que usar terno e gravata. Naquela época, um moleque de 12, 13 anos, era um tapado. Ou isso era característica minha? “Pai, por que você não trabalha? Pai, por que você dorme até meio dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra comprar...” E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de “burguês”. Eu estudei nas “melhores escolas”. E olha que o meu pai odiava escola. “A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas; por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes”, ele dizia. Ele saiu da escola na 4ª série do primário. Ele era canhoto. Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos escreveu “Barrela!”. “Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilégio meu, neste país.” Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que ele fosse débil mental. Meu pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a minha era escola de “burguês”. Mas como ele pagava a minha escola?


Foi preso, foi solto, ameaçado, escrevia em jornais e revistas, quase todos que existiam. Foi despedido de todos. A censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum. O que fazer? Sair do país? Ele não falava direito nem o português. O que fazer? “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma calça Soft Machine!”.


Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranqüilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial.


Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros aonde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele foi expulso pelo “rapa” como um camelô comum. E ele chorava? “Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de Banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo.” Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil, ou que era “foda”. Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?)


“Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar.”


Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: “Sai logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!” Eu saí, eu saí daquela merda na metade do 1º colegial. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade, sabe: o ensino do jeito que é, faz mal pra saúde.


Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o violão, triste, querendo encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou com um livro e leu um poema pra mim. “O corvo” do Edgar Allan Poe. Não disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele, aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer: “para sempre!”. Eu virei escritor, com 21 anos escrevi “Dores de Amores”. Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares. Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai era generoso, violento, essencial, amava, amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje, muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer assistir. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua, pra quem não quer comprar, ou pra quem compra só pra “ajudar”. O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: “Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com uma puta vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma.” E se ele me escutasse ele diria, com um sorriso malandro sem dentes, segurando as lágrimas: “Ê, Leo Lama!” Meu pai não sabia receber elogios. Mas se ele me ouvisse agora, eu diria:


Pai, eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu velório, estiveram os maiores artistas do país. Médicos, políticos, advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Eu tava segurando uma aba, o Kiko outra. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: “Plínio Marcos, um grito de liberdade!” Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista e nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente já era só o mar. E você foi, como todo mundo vai.


É isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia? Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe. O amor dela ecoa em mim.


Mas, e eu, pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. “A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos.” Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe, essa gente, os “homens-pregos”, fixos no mesmo lugar. Essa gente quer ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa, essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que acredita em Deus e fode ele, essa gente não quer ser essencial, pai, essa gente... essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com essa gente. Me perdoa.



Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos:

 

Leo Lama.


www.leolama.blogspot.com/



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Dionísio um personagem?


Notas do processo_14 de Julho_Mercadoria